Li-o nos anos setenta por sugestão de um estimado amigo que hoje revejo menos do que devia. Por essa altura fazíamos longos serões à conversa sobre as nossas duvidas, sobre o que o mundo esperava de nós e nós dele. Dávamos longos passeios a pé, por vezes embrenhados na noite então menos perigosa, como se esperássemos que ela não confirmasse a nossa frequente e melancólica conclusão: Qual o sentido da vida e como procurá-lo; nós não sabíamos.
Recordo bem a história do seu entusiasmo com "Os Cadernos de Malte Laurids Brigge" e como a importância do texto lhe tinha chegado. Se bem me lembro por sugestão de João Bénard da Costa.
Ainda tenho essa edição da Editorial Inova de 1975.
Há não muito tempo e depois de curiosas insistências do meu filho mais velho sobre livros e literatura, veio este livro à baila. Não resisti a folheá-lo de novo. Como não resisto a transcrever esta magnífica página.
"Creio que devia começar a trabalhar, agora que aprendo a ver. Tenho vinte e oito anos, e até aqui aconteceu tanto como nada. Vamos repetir: escrevi um estudo sobre Carpaccio, que é mau; um drama chamado «Matrimónio» que quer provar, por meios equívocos, qualquer coisa falsa; e versos. Ah, mas que significam os versos, quando os escrevemos cedo! Devia-se esperar e acumular sentido e doçura durante toda a vida e se possível durante uma longa vida, e então, só no fim, talvez se pudessem escrever dez versos que fossem bons. Porque os versos não são, como as gentes pensam, sentimentos (esses têm-se cedo bastante), - são experiência. Por amor de um verso têm que se ver muitas cidades, homens e coisas, têm que se conhecer os animais, tem que se sentir como as aves voam e que se saber o gesto com que as flores se abrem pela manhã. É preciso poder tornar a pensar em caminhos em regiões desconhecidas, em encontros inesperados e despedidas que se viram vir de longe, - em dias de infância ainda não esclarecidos, nos pais que tivemos que magoar quando nos traziam uma alegria e nós a não compreendemos (era uma alegria para outro - ), em doenças de infância que começam de maneira tão estranha com tantas transformações profundas e graves, em dias passados em quartos calmos e recolhidos e em manhãs à beira-mar, no próprio mar, em mares, em noites de viagem que passaram sussurrando alto e voaram com todos os astros, - e ainda não é bastante poder pensar em tudo isto. É preciso ter recordações de muitas noites de amor, das quais nenhuma foi igual a outra, de gritos de mulheres no parto e de parturientes leves, brancas e adormecidas que se fecham. Mas também é preciso ter estado ao pé de moribundos, ter ficado sentado ao pé de mortos no quarto com a janela aberta e os ruídos que vinham por acessos.
E também não é ainda bastante ter recordações. É preciso saber esquecê-las quando são muitas, e é preciso ter a grande paciência de esperar que elas regressem. Pois que as recordações mesmas ainda não são o que é preciso. Só quando elas se fazem sangue em nós, olhar e gesto, quando já não têm nome e já se não distinguem de nós mesmos, só então é que pode acontecer que, numa hora muito rara, do meio delas se erga a primeira palavra de um verso e saia delas...
Mas todos os meus versos nasceram de outra maneira; não são versos portanto. "In "Os Cadernos de Malte Laurids Brigge", Rainer Maria Rilke
Nos anos setenta era muito cedo para sabermos qual o sentido da vida. Nós não sabíamos. Nós não sabemos.
Com 28 anos (que dizes ter), não leste o Rilke nos anos 70, nem nos anos 80...
ResponderEliminarÉ melhor ler de novo; devagar. E tentar perceber o que é citação e o que não é. Por vezes é fácil...
EliminarO anônimo ali de cima poderia ter dormido sem essa. kkkkkkk É muita pressa pra condenar e pouco tempo dispendido pra investigar. Esse é o ser humano.
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